Psicologia e Educação Escolar no Estado de São Paulo: o caso dos Laboratórios de Pedagogia Experimental (1912-1930)

Psicologia e Educação Escolar no Estado de São Paulo: o caso dos Laboratórios de Pedagogia Experimental (1912-1930)


Fausto Antonio Ramalho Tavares
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Itapetininga
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP



A Psicologia sempre constituiu um ponto de vista privilegiado nas teorias e práticas pedagógicas e nos discursos dos professores. Desde os tempos da “pedagogia psicológica” de Herbart até as mais atuais propostas curriculares do espanhol Cesar Coll e de toda a moderna produção a respeito do construtivismo, a Psicologia tem servido como um importante ponto de vista para os inúmeros problemas que ocorrem no dia a dia profissional dos professores. Apesar das freqüentes ressalvas feitas à perspectiva psicológica sobre as questões escolares, as quais podem ser resumidas no argumento de somente a Psicologia não é capaz de dar conta de toda a complexa gama de fatores que influem sobre o desempenho escolar, mesmo assim continuam sendo os temas da Psicologia que mais atraem a atenção do professorado e que mais espaço tomam nos programas oficiais de capacitação. Neste presente artigo, nosso objetivo é discutir a importância geralmente atribuída ao conhecimento psicológico para o bom trabalho dos professores através de um estudo específico de caso, que é a criação e as atividades dos antigos Laboratórios de Pedagogia Experimental, (também conhecidos como Gabinetes ou laboratórios de Psicologia Experimental), cuja história, desenrolada há mais de 70 anos atrás, propicia, ao nosso ver, elementos muito interessantes para se pensar sobre o papel da Psicologia nos discursos oficiais e do consenso (ou será mito?) teórico em torno de suas reais possibilidades de alcance.
A discussão acerca das atividades desses laboratórios é antecedida por uma apresentação geral da bibliográfica especializada.


História da Psicologia e História da Educação em São Paulo

Os laboratórios de Pedagogia Experimental são também conhecidos, como já o dissemos, como gabinetes ou laboratórios de psicologia experimental. No período de 1912 a 1930, sabe-se que foram criados pelo menos três desses laboratórios em três escolas normais (Itapetininga, São Carlos e na Capital). De acordo com a bibliografia a respeito, eles inauguraram a tradição científica psicológica paulista no campo da psicologia da educação, pois, antes desse período, o que tínhamos era apenas uma pequena (ainda que rica) produção psicológica de cunho especulativo influenciada pelas diversas correntes filosóficas dos séculos passados ou pelas puras opiniões pessoais de seus autores, sem especialização nos temas ligados ao ensino ou à aprendizagem (ver Pfromm Netto,)
Como era de se esperar, as atividades desses laboratórios paulistas são geralmente relembradas mais pelo ponto de vista da história da psicologia do que pela da educação (ver, por ex., Cabral (1955), Pfromm Netto (1975 e 1981), Scheeffer (1970) e Olinto (1944). De acordo com essa perspectiva, atribuem-se aos laboratórios, em especial ao “Laboratório de Pedagogia Experimental da Escola Normal Secundária de São Paulo” (que depois veio a se chamar escola “Caetano de Campos”), o grande mérito de realizarem os primeiros estudos experimentais sobre os diversos aspectos psicológicos (memória, atenção, discriminação visual, tátil, cinestésica, etc.) difundindo por entre o público leigo, professores inclusive, as novas formas de compreensão do indivíduo humano abertas pela psicologia científica. Segundo o testemunho crítico de Patto (1987: 12), a tradição psicológica iniciada nesses trabalhos originais mantinha-se viva, ainda em 1984, em alguns departamentos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, legítima herdeira do passado republicano da antiga escola normal “Caetano de Campos”. Para essa bibliografia, importam os estudos puramente psicológicos desenvolvidos por aqueles professores: suas leituras, a recepção a psicólogos estrangeiros ilustres (Pizzoli, em 1914, Piéron, em 1927) e suas pesquisas feitas com base no modelo psicofísico e psicométrico então em moda. Às vezes até com depreciação, a bibliografia ainda destaca o papel de “dependentes culturais” que os professores mantinham em relação à cultura científica psicológica estrangeira.
Sem querermos menosprezar as contribuições dessa bibliografia (aliás, pelo contrário: suas informações são muito valiosas), devemos frisar, no entanto, que, neste artigo, estamos tratando da história da psicologia educacional paulista e dos seus primeiros laboratórios por um prisma diferente, isto é, analisando-os não pelo ponto de vista da constituição de um saber hoje reconhecido com seu estatuto próprio - a Psicologia - mas sim pelo ponto de vista da própria história da educação pública paulista, em cujo contexto, afinal de contas, puderam se dar essas primeiras atividades psicológicas ditas científicas.
É por conta da abordagem aqui adotada que as idéias e práticas psicológicas defendidas pelo grupo pioneiro de professores-psicólogos são tratadas aqui como saberes engendrados mais pelos problemas e questões surgidos no próprio campo profissional e institucional do ensino público paulista das décadas de 1910 a 1930 do que, como é mais comum de se fazer, como a simples importação de uma estrita cultura psicológica estrangeira. Para nós, portanto, a psicologia desenvolvida por aqueles professores é um importante traço intelectual revelador da cultura e do campo escolar da época, cujas características nos permitem entender não só a trajetória histórica da psicologia da educação em nosso meio, como também a própria constituição do saber e das práticas pedagógicas aqui estabelecidas, na íntima relação que esses saberes há muito tempo mantém.
Façamos, então, a descrição das atividades desses laboratórios, de acordo com a perspectiva da história da educação.

Os laboratórios de Pedagogia Experimental


O primeiro laboratório de psicologia experimental brasileiro foi criado no Rio de Janeiro, em 1889, pertencente ao também recém-criado “Pedagogium”, uma instituição destinada a servir de modelo às escolas normais e primárias cariocas. Das atividades desse laboratório, porém, quase nada se sabe.
Já no Estado de São Paulo, a notícia mais remota que se tem de laboratórios desse tipo, é a de que, em 1908, num pequeno grupo escolar da cidade de Amparo, o professor Clemente Quaglio realizava experiências psicométricas com seus alunos, pesquisando fadiga muscular, sensibilidade auditiva e visual, tempo de reação e memória (Quaglio, 1908). Durante a gestão de Oscar Thompson na Diretoria Geral da Instrução Pública, Quaglio transferiu-se para São Paulo, levando para a sua mais importante escola normal os equipamentos (estesiômetro, acúmetro, pneumógrafo, ergógrafo, etc.) de que já fazia uso em suas pesquisas psico-antropométricas. Segundo o próprio Quaglio, foi aí e graças a ele próprio que pela primeira vez no Brasil se utilizava a escala de inteligência de A. Binet.
No entanto, somente em 1914, com a vinda do “psicologista italiano” Hugo Pizzoli é que o laboratório veio a ter existência oficial, sendo chamado, na ocasião, como Laboratório de Pedagogia Experimental e celebrado numa pomposa cerimônia escolar, quando não faltaram nem autoridades políticas, religiosas e intelectuais da época. Enquanto esteve como responsável pelo laboratório, Pizzoli realizou três cursos de psicologia antropológica, uma espécie de psicologia baseada nas características somáticas e fisiológicas do indivíduo, publicou uma brochura com monografia de seus alunos, bem como instalou diversos aparelhos novos que ele próprio vendera ao Governo do Estado. Ainda relativo a influência de Pizzoli, é necessário destacar o interesse publicamente manifestado pela Diretoria Geral em adotar uma ficha psicoantropométrica para cada aluno da sua rede escolar, (cujo preenchimento, no entanto, demandaria enormes esforços humanos e técnicos para os quais as escolas não estavam preparadas, o deve ter sido a causa mais provável para o fracasso dessa empreitada oficial). Depois de sua despedida, o laboratório voltou às mãos de Quaglio e do professor de Psicologia, Pedagogia e Educação Moral e Cívica, Sampaio Doria, sem, porém, como afirma Lourenço Filho, lograr “despertar maior interesse”.
Apenas a partir de 1924, quando o próprio Lourenço Filho veio substituir Sampaio Doria na cadeira de Psicologia da Escola Normal da Capital é que o laboratório teria voltado a ser mais continuamente utilizado, desta vez para realizar estudos sobre prontidão para a leitura e para a aprendizagem escolar, estudos esses que culminariam com a criação dos famosos testes A.B.C. para ....., que muita notoriedade trouxeram a Lourenço Filho. Mas, nesse meio tempo, isto é, em 1927, o laboratório recebeu a sua segunda visita estrangeira importante, na pessoa do já então ilustre psicólogo francês Henri Piéron, sucessor de Alfred Binet na direção do Anné Psychologique.
O laboratório da escola normal da capital manteve suas atividades associadas ao desenvolvimento das pesquisas de Lourenço Filho até por volta de 1930, quando então veio a se transformar no Serviço de Psicologia Aplicada, um órgão da Diretoria Geral da Instrução Pública destinado a desenvolver métodos, pesquisas para a racionalização dos trabalhos escolares e cuja atribulada história constitui um capítulo a parte na história da educação pública paulista.
Feito esse brevíssimo resumo sobre o laboratório pedagógico da capital, façamos agora algumas indicações sobre os laboratórios de Itapetininga e São Carlos.
Em documentos encontrados na Escola Normal Secundária de Itapetininga, sabe-se que também nesta escola, já pelo menos a partir de 1912, eram realizadas experiências sobre memória, discriminação visual e tátil, bem como sobre altura, peso, “aparência geral”, e traços fisionômicos dos alunos da escola primária modelo anexa à escola normal, aos moldes da pretensiosa ficha psicoantropomética de Pizzoli. De acordo com nossas pesquisas feitas em seus arquivos, as atividades deste laboratório foram descontínuas e descrescentes, isto é, reduzindo os aspectos pesquisados nos alunos ano a ano. Assim, enquanto no ano de 1914 um grande livro de capa dura registra dados a respeito da capacidade menmônica, discriminação visual, auditiva e cinestésica, amplitude toráxica, etc. no ano de 1916 o mesmo livro registra apenas, em relação a outros alunos, apenas os dados relativos a altura, peso, amplitude toráxica e “aparência geral”. Talvez a eliminação da investigação sobre os dados mais propriamente psicológicos (ou psicométricos) tenha ocorrido em função de sua complexidade.
Já o laboratório da escola normal de São Carlos parece ter tido uma história mais acidentada ainda, pois há notícias de que nem mesmo chegou a ter todos os aparelhos e equipamentos idealiazados pelas autoridades escolares responsáveis, em razão dos bloqueios navais ocorridos durante a guerra de 1914-1918, que dificultavam o comércio de mercadoria entre o Brasil e a europa. De qualquer modo, o jornais escolar de São Carlos publicou em alguns de seus números as estatísticas das fichas antropométricas de seus alunos, em quadros estatísticos sistemáticamente organizados, o que vem revelar que, mesmo apesar de suas dificuldades, o laboratório era um órgão razoavelmente ativo dentro da rotina da escola, cujas informações eram julgadas importantes a ponto de sua divulgação no mais importante jornal escolar.
Feito este rápido esboço histórico, passemos agora a relacionar os eventos acima referidos com os acontecimentos da trajetória ideológica, institucional e política da escola pública paulista.


A Psicologia no discurso oficial e a trajetória institucional da escola pública paulista


O saber psicológico aparece nos discursos e práticas dos professores paulistas das primeiras décadas republicanas associado fundamentalmente a dois dos maiores interesses da escola pública da época: a renovação e racionalização de seus métodos de ensino e a regeneração (sanitária e moral) da sociedade através da educação do indivíduo.
Essas questões emergiram num momento em que o campo profissional dos professores passava por transformações profundas, tornadas visíveis, entre outras coisas, pelo gradativo aumento do mercado de trabalho e pela concomitante complexidade que as funções relacionadas ao ensino iam tomando. Pelas páginas da Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público, sabemos, que, principalmente a partir de 1910, quando esta revista passou a se dedicar “aos assuntos de interesse geral dentro do círculo circunscrito à sua especialidade”, que os temas considerados de maior relevância para a cultura profissional do professor eram “os ‘métodos especiais para o ensino das diversas matérias, as questões de disciplina e a formação moral como tarefa da educação escolar” (Catani, ). Em especial a partir de 1914, a mesma revista passou a tratar essas questões enriquecidas pelas novos conhecimentos produzidos então pela psicologia científica, através, geralemnte de artigos traduzidos e resumidos de livros e revistas estrangeiras. Dessa maneira, a psicologia vinha revistir, com sua aura de cientificidade positiva, os preceitos pedagógicos defendidos por muitos professores e dirigents escolares, legitimando e consagrando a visão sobre como deveria ser o trabalho escolar do professor.
Quanto ao segundo interesse da escola pública, isto é, a regeneração social do homem paulista, em especial o das classes baixas,


A educação pública é sempre um fato político. No caso da escola pública paulista das primeiras décadas republicanas, pode-se dizer, segundo o testemunho de muitos documentos, que, além de política no sentido lato do termo, as questões escolares eram também partidárias. Nomeações de professores e funcionários, criações de escolas, distribuição de verbas, atribuições de cargos e funções, alternâncias de dirigentes e outras tantas questões do cotidiano institucional nunca escaparam das vicissitudes impostas pelas ocorrências políticas-partidárias.
Assim, mais ou menos conforme as ideologias dos governantes do momento, os negócios escolares eram geridos de maneira sincrônica à política governamental mais ampla. Certamente que, com as afirmações precedentes, não estamos querendo dizer que não havia pensamento e atividade autônoma ou mesmo contrária de muitos professores e alguns dirigentes escolares em relação à política escolar oficial do momento. Longe disso. O que queremos afirmar é tão somente que mesmo as atividades consideradas puramente escolares (como publicação de normas técnicas e pedagógicas, elaboração de currículos, organização de eventos, etc.) não escapavam das influências políticas e das estratégias institucionais dos grupos que se esforçavam em marcar ou manter por mais tempo sua passagem pelas altas esferas do ensino público. Isto é, segundo o nosso ponto de vista, não há atividade escolar que ocorra disvinculada da maneira como os grupos (polítocos, professorais, intelectuais) se relacionam entre si na busca de assinalar seu maior ou menor prestígio e poder.
No caso dos laboratórios aqui tratados, não é apenas o interesse teórico que a psicologica despertava em alguns professores mais atualizados nem apenas as possibilidades práticas para a melhoria dos métodos de ensino que estavam em jogo. Além disso, é toda uma gama de estratégias de evidenciação grupal, através de artifícios intelectuais, científicos e escolares que puderam propiciar as condições necessárias para o estabelecimento desses laboratórios.
Então vejamos: as duas ocasiões de criação, uma informal e outra oficial, do laboratório de pedagogia da capital, ocorreram quando da administração geral de Oscar Thompson, um adepto da “método analítico” e defensor das inovações pedagógicas.


2 comentários:

Kaká disse...

Muito bom o texto.

Usei para um trabalho de extensão curricular.

Abraços!

Unknown disse...

Bom dia! Gostei bastante da sua discussão no artigo, intitulado, "Psicologia e Educação Escolar no Estado de São Paulo: o caso dos Laboratórios de Pedagogia Experimental (1912-1930)". Você chegou a publicá-lo em alguma revista ou congresso?
Grata,
Viviane