"A Escola do meu tempo...". Era boa mesmo?

"A Escola do meu tempo...". Era boa mesmo?


Neste ano em que a comunidade escolar de Itapetininga festeja os 100 anos de existência de sua mais famosa escola, a "Peixoto Gomide", é de se esperar o reaparecimento de uma opinião, muito comum entre as pessoas com mais de 40 anos de idade, que a escola pública de antigamente era bem melhor que a de hoje.
Certo que a crise atual da educação pública brasileira, e em especial a paulista, chegou num ponto sem similar em toda a sua curta história de existência, havendo mesmo aqueles, mais pessimistas, que já nem se acanham em anunciar o fim derradeiro de todo o nosso sistema público escolar. No entanto, a crença de que a situação era muito melhor antigamente e que isto justifica o desdenho pela escola atual, merece algumas retificações.
Primeiramente, dificultando a comparação entre o passado e o presente, a rede pública de ensino das décadas de 30 a 50 era quantitativamente inferior a de hoje, não tendo conseguido escolarizar nem metade da população brasileira desse período. Para se ter uma idéia disso, segundo estatísticas de 1950, a porcentagem de analfabetos em todo o Brasil era de cerca 50,48%
[1]. Para piorar, além de pequeno em relação à demanda da clientela a que deveria atender, o sistema público de ensino era extremamente elitista, "aristocrático e retrógado" e repleto de procedimentos didáticos e administrativos que dificultavam a ascenção do aluno na carreira escolar. Ainda de acordo com estatítiscas, em 1959, para cada 100 alunos matriculados na primeira série primária, apenas 25 chegavam ao ensino secundário[2]. Lembre-se, também, que até 1970, apenas para citar o Est. de São Paulo, tido como o que possui o melhor sistema público de ensino no país, ainda não havia sido resolvido o problema da falta de escolas, pois a porcentagem de crianças em idade escolar que frequentava a escola era de apenas 39,9%. Isto é, ainda no começo da década de 70, quando festejávamos o tricampeonato mundial de futebol, mais da metade da população de crianças estava fora das escolas[3].
Outra característica do ensino público desse período é o seu caráter discriminatório, que reservava uma formação diferenciada para ricos e pobres. Enquanto que os filhos das classes mais abastadas podiam frequentar o ensino secundário, de formação geral, e assim seguir caminho rumo ao ensino superior, os jovens das camadas populares só encontravam pela frente as escolas profissionalizantes, para formação de mão-de-obra operária. O detalhe interessante é que o diploma das escolas profissionalizantes não dava direito de ingresso nas faculdades, estrangulando assim a carreira escolar dos mais pobres.
O autoritarismo nas relações entre professores e alunos é outro aspecto do ensino público de antigamente, cujos castigos, proibições e humilhações públicas ainda estão bem vivos nas lembranças das pessoas mais idosas, o que nos faz, nós que fomos educados numa escola um pouco mais democrática, estranhar que essas mesmas pessoas ainda possam ter alguma nostalgia da maneira autoritária como as crianças eram educadas.
Pode ser que quando alguém se refira à educação pública das décadas passadas como melhor que a de hoje, não esteja se reportando a esses aspectos, mas sim ao "conteúdo das disciplinas ensinadas" e à "competência dos professores de antigamente para lecioná-las". Porém, mesmo sobre isso cabem algumas dúvidas. Pois até 1920, mais ou menos, a escola primária ensinava pouco mais que o ler, o escrever e o contar, além de algumas noções de religião, moral e civismo. Esse currículo foi progressiva e consideravelmente ampliado nas décadas seguintes, mas não há nenhum indício histórico que esse desenvolvimento tenha de fato alcançado rapidamente todas as escolas, principalmente aquelas situadas na zona rural e nos rincões mais afastados dos grandes centros urbanos, e nem que essas mudanças no conteúdo curricular tenham alterado em poucos anos o procedimento dos antigos professores, já acostumados a sua rotina de trabalho.
Também quanto à "grande competência" desses professores há controvérsias. Usando novamentes as estatísticas, em 1958 apenas pouco mais de 10% dos professores registrados no MEC tinham diploma de nível superior, e era mesmo comum a contratação de professores que não tinham nem o diploma de curso normal. As altas taxas de repentência e evasão escolar das décadas de 1930 a 1950, também são outros indícios de inadequação das técnicas didáticas e administrativas da escola pública em relação às caracterísitcas de sua clientela.
É claro que, mesmo com essas ressalvas, a história da educação pública brasileira tem muitos pontos positivos, pois afinal de contas foi o berço de formação de muitas de nossas melhores personalidades, como escritores, artistas, cientistas, intelectuais e políticos. Isso sem contar de alguns antigos professores, como Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Noemi Rudolfer, só para citar os mais famosos, que tanto lutaram pela democratização e qualidade do ensino público. Porém, seria um erro mitificar esse passado, eregindo-o como modelo ideal ao qual deveríamos retornar, desprezando assim as conquistas atuais de nosso sistema de ensino, como a sua expansão, o surgimento de entidades representativas do professorado realmente comprometidas com a categoria, e o crescente, ainda que titubeante, compromisso com a cidadania e a politização de nossos jovens.
Ainda que essas frágeis conquistas não possam salvar a escola pública atual do péssimo julgamento a que foi condenada pela maioria da sociedade, o passado escolar brasileiro não deve ser visto com nostalgia e saudosismo , mas sim servir para uma reflexão crítica na sua sequência histórica de lutas, construção e descontrução de um ideal nunca alcançado.
Na ocasião do centenário da escola "Peixoto Gomide", são meus votos que a saudade (justa, afinal de contas, por relacionar-se à história de vida de cada uma das pessoas que passou por essa escola) não faça esquecer essa necessária reflexão crítica sobre o que tanto que já foi feito e o muito que ainda está por se fazer no campo do ensino público.

[1]ROMANELLI, Otaíza - História da Educação no Brasil - 1930/1973 -Ed.Vozes. RJ. 1987.

[2]VILLALOBOS, J.E.R. - O Porjetoe e o Ensino Secundário - In: "Diretrizes e Bases da Educação Nacional". Ed. Pioneira. SP. 1960.

[3]CUNHA, Luis Antonio - Educação e Desesvolvimento Social no Brasil - Francisco Alves. RJ. 1986.

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