A Psicologia e a formação do sistema público de ensino no Estado de São Paulo

Fausto Antonio Ramalho Tavares
Orientadora: Profa. Dra. Denice Bárbara Catani (EDF)

I. Introdução

Entre as muitas pesquisas que se ocupam em determinar as influências que forjaram a formação do sistema público de ensino no Est. de São Paulo, no período relativo à Primeira República, a maioria de seus autores colocam na ideologia positivista, no ideário republicano e no contexto de rápido desenvolvimento econômico do final do século passado, os principais fatores que predispusseram o governo paulista a investir no ensino público. Para esses autores, como NAGLE (1976), TANURI (1973) E REIS FILHO (1980), teria sido nesse novo contexto político-cultural que os reclamos de ampliação e melhoria da escola pública, feitos por alguns segmentos da classe dos professores, intelectuais, políticos e até da própria elite econômica, puderam ter o apoio positivo do governo para a execução de um inédito projeto de ensino público. Numa outra vertente de análise, situam-se aqueles autores que, sem desprezar as influências ideológicas e econômicas do momento cultural e político da virada do século XIX no Est. de São Paulo, buscam justamente desvendar através de que meios esta ideologia pôde alcançar seus objetivos. Numa perspectiva mais aproximada dos acontecimentos históricos, esses autores preferem colocar na própria classe professoral e em sua capacidade de mobilização e agenciamento, as razões para que o projeto paulista de ensino público tenha alcançado relativo êxito nas primeiras décadas deste século (CATANI, 1989).

Em nossa pesquisa de mestrado, em fase de conclusão, apoiados em informações colhidas por essas duas vertentes de análise, tentamos mostrar que, subjacente ao discurso ideológico do republicanismo e no interior mesmo do discurso e da prática dos educadores comprometidos com a liderança do ensino público paulista, existe uma outra espécie de pressupostos, pretensamente científicos, que possiblitaram a justificação e legitimação de muitas de suas reivindicações. Sob esse manto de pressupostos, estamos nos referindo aos então novos conhecimentos da psicologia científica (ou experimental), que, através de diversas publicações e pela iniciativa pioneira de alguns professores e instituições, veio encontrar solo fértil entre as pretensões dos educadores da Primeira República.
Essa Psicologia Científica, que, a partir da última década do século XIX, ganhava cada vez mais importância no meio acadêmico europeu e norte-americano, e que, aqui no Brasil, embora com alguns poucos anos de atraso, vinha aportar como "a mais bella e a mais diffícil [1]" das ciências (MARTINEZ,1916:1), da qual se esperava que fornecesse "as bases scientificas a seguir no ensino" (ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO, 1927:6), trazia em si todos os elementos capazes de seduzir os educadores paulistas, desejosos de ver renovada as arcaicas práticas escolares até então vigentes. A nova Psicologia era experimental, de maneira a agradar à concepção positivista de ciência que se tinha no momento, e ocupava-se, entre outras coisas, em desvendar a "vontade nascente das creanças" (PUJOL, 1904:9), possibilitando que o "ensino esteja de pleno acôrdo com a natureza da intelligência infantil" (CARDOSO, 1904:12). Sob esses paradigmas e promessas, não é de estranhar que o novo saber psicológico tenha sido, em muitos momentos da educação pública paulista durante a Primeira República, um dos mais importantes referenciais teóricos para o estabelecimento de coisas tão variadas como a elaboração de leis, a definição dos horários de funcionamento das escolas primárias e dos seus programas de ensino, ou ainda para nortear os critérios de punição e premiação dos estudantes,
Reeencontrar essas influências, fazer ressurgir os argumentos que em outras épocas faziam justificar tanto uma lei oficial quanto um procedimento escolar corriqueiro, e compreender a articulação desses pressupostos dentro do contexto que os gerou, não é um trabalho fácil. Pois, ao lidar com esses discursos já longinquos no tempo e difusos mesmo em sua época original, o pesquisador pode, sem o perceber, estar valorizando algo que era apenas acessório ou que, tomado como coisa compacta, antes era apenas fragmentos.
Para evitar esses errros, nossa pesquisa procurou perseguir a vinda, a difusão e a pertinência dos conhecimentos psicológicos nos discursos e práticas dos educadores paulistas lá onde acreditamos mais essa influência pode ser tomada como fidedgna da realidade a qual se refere, isto é, nos artigos de revistas especializadas em educação[2], nas quais, através do acompanhamento cronológico de suas publicações, pudemos confrontar a evolução, ou melhor dizendo, o desenrolar das discussões travadas pelas diversas pessoas e instituições que, neste começo do século em São Paulo, se ocuparam com os assuntos da educação pública. Tanto quanto nos foi possível, os dados colhidos nestas revistas foi cotejado com outras publicações oficiais e pára-oficiais, como programas de ensino, "pontos de aula", livros didáticos de psicologia e pedagogia, recomendações de inspetores de ensino, discursos de formatura, etc.
No presente artigo, procuraremos mostrar, através de alguns tópicos já pesquisados em todo o material acima descrito, como a influência dos saberes advindos com a nova psicologia científica se efetivou no discurso e na prática dos educadores paulistas da Primeira República.

II.O começo: a psicologia implícita no discurso pedagógico

A importância da Psicologia sobre a teoria e a prática educacionais já é reconhecida há muito tempo pelos historiadores da educação. Desde 1905, Paul MONROE dedicava, em seus livros de historia universal da educação, um capítulo especal sobre aquilo que ele mesmo denominava a tendência psicológica na educação. Para esse autor, as influências dos princípios e métodos da pesquisa psicológica podem ser detectadas principalmente pelo impacto que as idéias de PESTALOZZI, FRÖBEL e HERBART tiveram nos educadores do século XIX, que passaram a dar mais atenção, "principalmente, para o melhoramento do método de instrução, do espírito do trabalho de classe, do preparo e do tipo do professor, e para a vulgarização de um conceito mais amplo e mais verdadeiro da natureza da educação". Em sua época, MONROE reconhecia que as idéias desses primeiros "educadores psicologistas" havia sido elaborada de maneira "quase sempre superficial e empírica" e, por isso, a "aplicação destes princípios (psicológicos) à educação é ainda, em grande parte, obra do futuro" (MONROE, 1969:276)
Futuro, aliás, que não demoraria a se tornar presente, através dos trabalhos de Alfred BINET (1857-1911) E. CLAPARÈDE (1873-1940), E .L. THORNDIKE (1874-1949), da criação, em 1901, da revista Archives de Psychologie e do "Instituo Jean-Jacques Rousseau", criado em 1912. Segundo o historiador espanhol César COLL, confirmando o otimismo com que se via a participação da psicologia nas questões educacionais, "com o nascimento da psicologia científica no final do século XIX,... há a firme convicção de que o desenvolvimento desta nova disciplina provocará um forte impulso no campo da teoria e da prática educacionais, ao mesmo tempo que proporcionará uma base científica para abordar e solucionar os problemas da educação" (COLL, 1990:12).
Essa mesma convicção não demoraria a chegar ao Brasil a partir de meados da década de 1910, onde os investimentos públicos no ensino e a dominância do pensamento positivista seriam condições extremamente propícias para a difusão das teorias da psicologia experimental.
Aspecto a ser destacado é que essa transposição de conhecimentos originários de outros países não foi passiva e fielmente adaptado ao caso brasileiro, ou paulista, para sermos mais exatos. Autores como João TOLEDO, Sampaio DÓRIA e LOURENÇO FILHO, só para citar alguns, foram, uns mais, outros menos, de uma criatividade admirável na produção e difusão de uma psicologia voltada à educação.
Mas nem sempre a psicologia participava nos discursos de professores e autoridades do ensino de maneira explícita. Muitas vezes, principalmente no período 1890 a 1910, enquanto as pesquisas da psicometria e da psicofísica ainda gozavam de grande consideração no meio intelectual europeu, mas que cujos resultados ainda eram pouco conhecidos no Brasil, a perspectiva psicológica participava apenas como um ponto de partida para se analisar as questões educacionais.
Essa psicologia implícita ao discurso do educador ou de quem quer que fale sobre a educação, é mais facilmente detectada nos debates sobre a disciplina infantil e na maneira correta do professor em lidar com sua classe. Nesse momento inicial de consolidação do ideário republicano, esses tema eram tidos como de importância máxima para o sucesso do projeto educacional que se queria por em prática. Atribuindo ao educador a tarefa "de montar a machina destinada a encaminhar a sociedade a um organização mais racional e mais justa" (FRANCO, 1903:9), a maioria dos professores desse período participam daquilo que já se convencionou chamar como o "entusiasmo pela educação", isto é, a crença de que "a ignorância reinante é a causa de todas as crises; a educação do povo é a base da organizaçõa social, e, portanto, o primeiro problema nacional..." (NAGLE, 1977:263). Entendendo a "escola como o coração do Estado" (CAMPOS, 1933:171), é natural que a preocupação agora recaisse sobre o caracter, isto é a personalidade do professor e do aluno, pilares de uma nova nacionalidade, como se verifica no seguinte texto: "Não basta ao professor publico conhecer admiravelmente a arte de despertar os espíritos; é ainda preciso conhecer a arte de formar os carateres. (...) Comecemos abandonando a rotina, tão defectiva, que tende a desenvolver na creança as forças do cerebro mais que os musculos, a intelligencia mais que o caracter..." (PUJOL, 1903:436).
Não casualmente, a única disciplina que incluia aulas de psicologia nas escolas normais paulistas entre os anos de 1889 a 1910, chamava-se "Pedagogia, Psicologia e Educação Cívica". Apesar de hoje nos parecer estranha a junção dessas três disciplinas, o texto a seguir nos dá algumas pistas sobre a lógica de sua união: "A educação nacional arrasta consigo a Educação Cívica. Aquella abrangendo collectivamente a educação physica, intellectual e moral, esteia-se sobre tudo, em sua mais alta comprehensão sobre o Civismo (formação do caracter), pois é na Escola do Civismo que o caracter d'uma população recebe sua orientação. D'ahi a importância da parte da Pedagogia que trata da formação do caracter das creanças" (PUJOL, op. cit.).
Esses pucos trechos citados, entre os muitos que poderiam serem lembrados, já bastam para caracterizarmos a psicologia implícita ao discurso do educador das duas primeiras décadas republicanas. Definindo a escola como órgão estratégico para o "soerguimento moral da nacionalidade", e dando aos professores a responsabilidade por essa missão, uma das preocupações principais do discurso pedagógico, neste momento, passa a ser o estabelecimento da personalidade ideal do professor e as influências de seu comportamento sobre o desenvolvimento moral do educando[3]. Isto é, mesmo misturada a questões nacionalistas, filosóficas e morais, é ainda a perspectiva psicológica que serve de ponto de partida e chegada para o debate dessas questões.
Surpreendente é o salto desta participação implícita e baseada no senso comum da psicologia, para uma mais elaborada e complexa visão teórica das questões educacionais, que, já a partir de 1911, passou a ter na psicologia científica o mais forte referencial para sua legitimação e justificação.

III. Frutos precoces: os Gabinetes de Psicologia Experimental

O primeiro laboratório de psicologia experimental brasileiro foi criado no Rio de Janeiro, em 1889, pertencente ao também recém-criado "Pedagogium", uma instituição destinada a servir de modelo às escolas normais e primárias cariocas. Das atividades desenvolvidas por esse laboratório, porém, quase nada se sabe.
Já no estado de S. Paulo, a notícia mais remota que se tem de laboratórios desse tipo, é a de que, em 1908, num pequeno grupo escolar da cidade de Amparo, o professor Clemente QUAGLIO realizava experiências psicométricas com seus alunos, pesquisando fadiga muscular, sensibilidade auditiva e visual, tempo de reação e memória de aprendizagem (QUAGLIO, 1908).
Talvez pelo interesse despertado por suas pesquisas, cujos resultados foram publicados na Revista do Ensino, o fato é que QUAGLIO, durante a gestão de Oscar THOMPSON na Diretoria Geral da Instrução Pública passou a ser responsável, a partir de 1911, do "Gabinete de Psicologia Experimental" da Escola Normal de São Paulo, atual "Caetano de Campos". De suas novas atividades nesse gabinete, também pouco se sabe, pois não encontramos mais indícios de suas possíveis publicações.
Mas é de se crer que a reputação do Gabinete de Psicologia Experimental tenha aumentado com o passar dos anos, ou então que se tenha sentido a importância em reformular sua estrutura e objetivos, pois, já em 1914, o governo do estado decide por fazer maiores investimentos nessa área, contratando, pelo prazo de um ano, o "psicologista" italiano Ugo PIZZOLI. Segundo notícias publicadas pelo próprio Gabinete, "após um anno de trabalho exhaustivo, o Prof. PIZZOLI conseguiu apresentar um gabinete montado com parcimonia mas com todos os apparelhos necessarios para as experiencias mais importantes de psychologia experimental. Além do trabalho de organização, em que empregava grande parte do dia, encarregava-se o Prof. PIZZOLI de um curso de pedagogia scientifica, destinado especialmente aos professores de pedagogia, inspectores escolares e directores de grupo" (ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO, 1927:3).
O Gabinete de Psicologia Experimental servia a três finalidades básicas: ser o local de demonstração das descobertas e leis da moderna psicometria, para os alunos da escola normal; oferecer, aos professores de outras escolas, cursos de atualização em "pedagogia científica", e, finalmente, ser o instrumento de classificação psicoantropométrica dos alunos da escola modelo, os quais, a partir dessa data, passariam a ter um ficha especial para seu acompanhento escolar.
Difícil é afirmar até que ponto esses três objetivos foram realmente colocados em prática, haja visto a dificuldade em se obter documentação a respeito[4]. No entanto, sabe-se que foi a partir da vinda de Ugo PIZZOLi que outros dois gabinetes foram criandos nas escolas normais de IItapetininga e São Carlos[5], o que demonstra o interesse das autoridades do ensino da época em ver difundidos os conhecimentos da psicologia.
* Em 1927, teria sido a vez de Henri PIÉRON visitar o gabinete, quando realizou "uma serie de conferencias de psychologia geral e de psychotechnica e ministrou aulas praticas de psychologia experimental (...) em que teve a opportunidade de fazer funccionar grande numero de apparelhos desse laboratorio" (ESCOLA NORMAL DE S. PAULO, op. cit.).

Depois da partida de Henri PIÉRON, a mais importante atividade do gabinete da Escola Normal da Praça, foi a realilzação, organizada por Lourenço Filho, já então professor de psicologia, das primeiras pesquisas sobre o famoso teste de prontidão "A.B.C.". Feita em escala massiva, envolvendo mais de 1.000 crianças, Lourenço Filho teve a colaboração de diversos de seus alunos e de outros jovens professores, dos quais se destacam: Noemi S. RUDOLFER, Raul BRIQUET, J.B. DAMASCO PENNA e Juventina SANTANA.
Nos anos posteriores a 1927, com a aposentadoria e morte dos antigos professores "entusiastas" da educação, seriam essas pessoas, entre tantas outras, que iriam substituí-los na vanguarda do ensino público paulista. Já intelectualmente fascinados pelo o que a pesquisa sistemática da psicologia poderia oferecer à educação, esses professores, principalmente através da Revista de Educação (1927-1962), foram, pioneiramente, os que mais contribuiram para a difusão disso que podemos chamar de os primórdios da psicologia da educação brasileira (SCHEEFER, 1979).

IV. Da experiência à aplicação: o Serviço de Psicologia Aplicada

Se a história dos três gabinetes de psicologia experimental do estado de S. Paulo é incerta e inconstante, tudo isso prometia mudar quando, em 1930, Lourenço Filho, é empossado diretor geral da instrução pública. Entre as diversas medidas que toma, para este artigo o que mais nos interessa é a criação do Serviço de Psicologia Aplicada (ou S.P.A., como era denominado), surgido a partir da reestruturação do antigo gabinete de psicologia da Escola Normal, esta também reestruturada, agora sob o nome de "Instituto Pedagógico". Entregue à direção de Noemi S. RUDOLFER, o S.P.A. possuia um objetivo bastante definido: adaptar, padronar e aferir testes de aprendizagem estrangeiros para a realidade brasileira, bem como desenvolver testes originais para aplicação nas escolas paulistas.
Com esse trabnalho, espera-se resolver aquilo que era tido como o mais grave dos impecilhos para a eficiência do ensino público, isto é, a formação arbitrária das classes de aula, que não levavam em conta as diferenças individuais dos alunos. Nessa perspectiva, a homogeinização das turmas de alunos de acordo com o resultado em testes de inteligência e maturidade para a aprendizagem, era a grande bandeira do S.P.A..
Colocada, por esse grupo de professores que agora ocupavam importantes cargos na hierarquia do ensino público, como a cência mestra a guiar o trabalho do educador, a psicologia parecia agora suplantar a própria pedagogia, colocando em crise a sua nascente especificidade. O termo "pedagogia científica", criado por E. CLAPARÈDE, muito em voga durante a década de 30, em contraponto à "pedagogia tradicional", é o que melhor resume essa nova área de conhecimento, intersecção entre a pedagogia e a psicologia. Das calorosas polêmicas entre essas duas correntes, um bom exemplo é o seguinte texto de José Ribeiro ESCOBAR, na época "assistente técnico de ensino" responsável pela elaboração dos programas curriculares da escola primária de São Paulo:
"O Templo de Mnemosine que é a escola tradicional, está com as suas ruínas sem escoras. (...). Na escola tradicional, diz-se, o programa é apriorístico, emprega métodos subjetivos, põe todo o acento no preservar a contribuição cultural do passado; é imposto e é imperialista como as contribuições de outrora. Na escola nova - o programa é científico, baseado em métodos objetivos de investigação psicológica e de inquéritos sociais; é democrático, liberal, natural, porque ausculta os anceios da realidade da alma infantil e da realidade mesológica" (ESCOBAR, 1934:8-9).

Jonathas SERRANO, carioca, em palestra aos alunos da Escola Normal de São Paulo, é outro professor que vem engrossar a opinião dos que defendem a "pedagogia científica": "Só um fundamento, rigorosamente científico e psicológico dará à pedagogia a autoridade que lhe é indispensável para conquistar a opinião e forçar a adesão às reformas desejáveis. Esse fundamento científico a psicologia experimental o proporciona hoje, e o mais reacionário dos pedagogos da velha escola não poderá negar sem cair no ridículo" (SERRANO, 1929: 277).
Por outro lado, não deixa de ser interessante registrar aqui a resistência de um desses "reacionários", nas palavras do inspetor escolar Ciro Freitas GAIA:
"A sofreguidão de renovações pedagógicas que hoje contemplamos, si para alguns é um bem, para a maioria é um mal, e um mal irremediável. (...) Não podemos ir ao ponto de condenar, pura e simplesmente, a contribuição das idéias, do trabalho de nossos antepassados sabendo que é nelas que nos devemos estribar para a preparação do futuro" (GAIA, 1932:95).
Numa crítica muito mais virulenta, a feminista Maria Lacerda de Moura, assim contemplava as inovações pedagógicas implantadas pelos adeptos da psicologia: "Fazem concursos, estudam psicologia e antropologia pedagógica e citam Binet, Ribot, Montessori, Claparède, Decroly e os `tests' de psicologia experimental e as enquetes com professores notáveis, mas continuam impermeáveis: patriotas, religiosos, cheios de preconceitos de toda espécie, absolutamente fechados dentro de si mesmos, vacinados com o soro do passado reacionário. (...) E os mais altos ideais prostituem-se em contato com a malícia ou com a literatura de rebanho. (...) O trabalho da escola oficial é mediocrizar, é tornar vulgar a criatura, é matar ou pelo menos adormecer, num sono profundo, as nossas possibilidades interiores. A sociedade só quer rebanhos. (...)" (MOURA, 1932:196).
Mesmo vistos por uns como revolucionários detratores de um pretenso passado escolar tradicional, por outros como domesticadores da livre rebeldia humana, ou simplestemente mal compreendidos por outros, os partidários da "pedagogia científica" (da qual o escolanovismo foi uma versão mais famosa) já haviam conseguido selar para sempre as relações entre a pedagogia e a psicologia. E mesmo depois, quando outras ciências e disciplinas passaram a ser tidas como de importância fundamental para as questões educacionais, a psicologia pareceria ainda manter seu lugar priveligiado entre as "ciências da educação"
De vida atribulada e curta, o S.P.A. foi extinto oficialmente em 1938, quando então o que restava do seu patrimônio e do antigo gabinete de psicologia experimental foi transferido para a recém-criada cadeira de "Psicologia Educacional" da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo Suas muitas realilzações, no entanto, que tanto celeuma causaram entre os professores públicos, foram mais do que suficientes para projetar o nome de seus responsáveis como "vanguardistas" da educação, e através dos quais o antigo ponto de vista dos primeiros educadores da Reupública, ganhou maior consistência e se espalhou a crença de que a resposta aos problemas educacionais estava mesmo na psicologia, crença essa que ainda hoje tem seus adeptos.

V. "Como se fosse uma conclusão"

Neste artigo, fruto de uma pesquisa ainda em fase de conclusão, era nosso objetivo destacar outros fatores, além daqueles já apontados pelas pesquisas em história da educação brasileira, que foram determinantes para a formação do sistema público de ensino no Estado de S. Paulo. Descrevendo alguns momentos em que a cumplicidade entre psicologia e pedagogia foi fundamental no desenrolar dos acontecimentos educacionais, tentamos mostrar como a participação da psicologia foi crucial tanto para legitimar algumas das ações pedagógicas que então se tentava por em prática, quanto para colocar em crise a própria concepção que se tinha da pedagogia e do trabalho do professor.

VI. Bibliografia e fontes

CARDOSO, Luis
1904 - Ensino Racional (I) - In: Revista do Ensino, n#1, SP, Tip. do Diário Oficial.

CATANI, Denice Bárbara
1989 - Educadores À Meia-Luz (Um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação do Professorado Público de S. Paulo: 1902-1918) - Tese de doutoramento. SP. FEUSP. Mimeog.

COLL, César
1990 - As Contribuições da Psicologia Para a Educação: Teoria Genética e Aprendizagem Escolar - In: AGUIAR, Cleusa de Toledo (org.) - Coletânea de Textos de Psicologia - Vol. 1. SP. SE/CENP.

ESCOBAR, J. Ribeiro
1933 - Histórico da Instrução Pública Paulista - In: Revista Educação. V.5. SP. DGE.
1934 - A Cosntrução Científica dos Programas - SP. DGE/IMESP.

ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO
1927 - Psychologia e Psychotechnica (Publicação do Laboratório de Psychologia Experimental) - SP. Tip. Siqueira.

FRANCO, Luiz Cardoso
1903 - Missão do Professor na Organização Social - In: Revista de Ensino. n#1. SP. Tip. do Diário Oficial.

MARTINEZ, C.
1916 - Rudimentos de Pedagogia (III ANNO - Pontos organisados de accordo com o Programma das Escolas Normáes do Estado de São Paulo) - Pirassununga. SP. Tip. da "Nova Phase".

MONROE, Paul
1969 - História da Educação - Série "Atualidades Pedagógicas", vol. 34. SP. Comp. Editora Nacional.

NAGLE, Jorge
1977 - A Educação na Primeira República - In: FAUSTO, Bóris (org.) - História Geral da Civilização Brasileira - O Brasil Republicano: Sociedade e Instituições (1889-1930). SP/RJ. Difel. Tomo III, vol. 2.

PUJOL, Hypolito
1903 - Vocações - In: Revista de Ensino, n#3. SP. Tip. do Diário Oficial.
1904 - A Obediência e o Instinto de Rebeldia Nas Creanças - In: Revista de Ensino, n#1. SP. Tip. do Diário Oficial.

QUAGLIO, Clemente
1908 - Pequena Experiência Sobre a Psicologia Infantil - In: Revista de Ensino, n#2. SP. Tip. do Diário Oficial.

REIS FILHO, Casimiro dos
1981 - A Educação e a Ilusão Liberal - Col. "Educação Contemporânea". SP. Cortez Editora/ Autores Associados.
SCHEEFFER, Ruth
1970 - Contribuição da Psicologia ao Campo da Educação nos Últimos 20 Anos, no Brasil - In: Arquivos Brasileiro de Psicologia Aplicada. RJ. 22(2), p 15-20.

TANURI, Leonor Maria
1979 - O Ensino Normal No Estado de São Paulo (1890-1930) - Série "Estudos e Documentos", vol. 16. SP. FEUSP.


[1] As citações foram transcritas de acordo com a grafia original de época.
[2]Em especial, utilizamos as seguintes revistas: Revista do Ensino (1902 - 1919), publicada pela Associação Beneficente do Professorado Público do Est. de São Paulo, e da Revista de Educação (1927 - 1962), publicada pela extinta "Diretoria Geral da Instrução Pública" do Est. de Sào Paulo (atual Secretária Estadual da Educação)
[3] No cenário cultural dos anos 1870-1910, era polêmica comum entre os intelectuais a discussão sobre a especificidade do carater do homem brasileiro, em cujos ombros se planejava construir uma nova nação "de hábitos renovados". Sobre essa questão, consulte-se SCHWARCZ, Lilia Moritz - O Espetáculo das Raças (Cientistas, InstituiçÕes e Questão Racial no Brasil - 1870/1930) - SP. Companhia das Letras.1993.,
[4] Sobre os anos posteriores a vinda de Ugo PIZZOLI, assim se refere uma publicação do Gabinete de Psicologia Experimental: "Por alguns annos, ainda sob o impulso inicial, o gabinete de psychologia experimental colheu algumas vantagens, mas, pouco a pouco, a força impulsora foi diminuindo até ficar prestes a extinguir-se. (...). Os apparelhos, empoeirados e perros, permaneciam como vestígios de uma vida extincta. O gabinete de psychologia experimental existia só para apresentar aos olhos curiosos dos que o visitavam uma série de apparelhos interessantes, de uma applicação pratica indiscutivel mas, permanentemente, inactivos " (ESCOLA NORMAL DA PRAÇA, 1927:4).
[5] Sobre as atividades desses dois últimos gabinetes, muito pouco se sabe, já que nem mesmo as publicações do laboratório de psicologia da Escola Normal de S. Paulo, que lhes deu origem, fazem referências a eles.

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